Para começarmos a conversar sobre o tema das nossas próximas aulas, Estrutura e Formação das Palavras, começaremos por ler um texto do poeta mato-grossense Manoel de Barros.
ESCOVA
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar o osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechados no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora."
NOTA: caso tenha interesse em conhecer mais sobre a vida e obra do poeta Manoel de Barros, clique aqui. Para compreendermos o texto que acabamos de ler, vamos pensar nas questões abaixo:
· O que o poeta tinha vontade de fazer?
· O que fazem os arqueólogos?
· Como poderíamos escovar palavras?
· O que ocorre quando escutamos conchas?
· Por que as palavras são conchas de clamores antigos?
Tendo pensado nas questões acima, uma das possíveis reflexões que o texto nos permite fazer é a de que as palavras não surgem junto com a gente. Não somos os primeiros a pronunciá-las nem as inventamos. Antes de nascermos elas já existiam e já eram usadas por outras pessoas. Nós as aprendemos ouvindo de outras pessoas ou as lendo em algum lugar. Mas se elas existem antes de nós e, muitas vezes, antes de nossos pais e avós, então de onde elas vêm?
O poeta nos diz que as palavras possuem muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. O que ele quer dizer com isso?
Para entendermos melhor, vamos pensar na palavra gárgula. Você já viu uma gárgula? Veja a imagem abaixo:
Podemos chamar gárgulas a essas esculturas de seres imaginários que aparecem geralmente em prédios e templos antigos. Segundo o Houaiss, gárgula é:
“desaguadouro, parte saliente das calhas de telhados que se destina a escoar águas pluviais a certa distância da parede e que, especialmente na Idade Média, era ornada com figuras monstruosas, humanas ou animalescas”.
Sendo assim, notamos que, em princípio, gárgula dá nome a uma espécie de calha, à qual os medievais, com um intuito artístico, acrescentaram uma estrutura esculpida, como a que vemos acima, ocorrendo que, ao escoar a água da chuva, ela sai pela boca da criatura fazendo um som parecido com o de gargarejo. Ora, muitas vezes, para representar o barulho da água escoando ou sendo bebida por alguém usamos o som da letra g (por exemplo, glub; glog...). Dessa forma, o pedaço garg na palavra gárgula refere-se a gargarejar e nos recorda o barulho produzido pela água. É nesse sentido que o poeta nos diz que as palavras possuem no corpo (as letras que as formam) muitas oralidades (sons) remontadas.
Somente uma curiosidade: pode ser que você questione por que as igrejas têm imagens de monstros esculpidas em seus topos em vez de se esculpir anjos? Dê uma olhada neste detalhe da Catedral da Sé:
A resposta é de que, especialmente na Idade Média, acreditava-se que o Paraíso ficava sobre uma grande montanha que se localizava em alguma parte da Terra, desconhecida dos homens. A fim de que estes não subissem sem o devido consentimento ao Paraíso, imaginava-se que Deus mantinha criaturas maravilhosas que impediam a aproximação de intrusos. É com o objetivo de se referir a esses monstros que as igrejas possuem tais esculturas no alto dos templos.
Saciada a curiosidade, vejamos outro exemplo, agora referente às significâncias remontadas de nos fala o poeta. Para tanto, analisemos a palavra útero.
Segundo Houaiss, útero é o órgão muscular oco do aparelho feminino que acolhe o ovo fecundado durante seu desenvolvimento e o expulsa, finda a gestação.
A grosso modo, podemos dizer que o útero é um recipiente, pois recebe algo em si. Contudo, este algo que ele recebe é um ser vivo e, socialmente, a notícia de uma gravidez costuma ser uma alegria para os pais e aqueles que são ligados aos pais. Ora, segundo um estudo etimológico (ciência que estuda a origem das palavras), a palavra útero vem de outra palavra latina, uter, que era usada remotamente para designar o odre, recipiente em que se guarda líquidos, dentre eles o vinho. Esta última bebida é tida pela tradição como símbolo da alegria e da vida. Dessa forma, podemos perceber que a palavra para designar o órgão que gera a vida vem de outra palavra que se refere a um recipiente cujo líquido guardado em si é motivo de alegria para os homens. Assim, os significados de útero e odre estão ligados por uma relação de sentido.
É por isso que o poeta diz que as palavras são conchas de clamores antigos, porque as ouvindo atentamente, investigando suas origens, podemos descobrir de onde elas vêm, mesmo que estas significâncias e oralidades estejam longe de nós, no tempo e no espaço.
Agora, resta-nos pensar: será que é possível escovar as palavras?
Vejamos. Apliquemos a nossa “escova” à palavra infelizmente.
Se escovarmos o final dessa palavra, retirando todas as letras dela até chegarmos à outra palavra, teremos infeliz. Se decidirmos escovar o começo dela, então teremos uma nova palavra: feliz.
Poderíamos também viajar no tempo para procurar suas antigas oralidades e significâncias, mas creio que já está provado que é possível escovar palavras.
É exatamente isso que aprenderemos a fazer em nossas próximas aulas. Não somente a escovar palavras, mas também a utilizar outros instrumentos que nos ajudarão a descobrir os significados das mesmas. Por exemplo, podemos também dividir palavras em pedaços menores que contêm sentido em si.
Dê uma olhada no exemplo abaixo:
Podemos dividir a palavra arqueologia em arqueo (=arcaico, antigo) e logia (estudo), sendo arqueologia uma ciência que estuda antiguidades. Podemos também pegar o termo logia e juntar a outros pedaços de palavras, tais como socio, psico, geo. No último caso, formamos a palavra geologia que significa estudo (=logia) da terra (=geo). Se juntarmos geo com grafia, teremos geografia, que é a ciência que descreve a terra por meio de mapas e outros instrumentos. Grafia significa escrita. Podemos juntá-la a orto e teremos ortografia, que é a escrita (=grafia) correta (=orto) das palavras, ou a cali e teremos caligrafia, que é a bela (=Cali) escrita (=grafia) das palavras. E assim por diante.